Os estudos pós-freudianos sobre a histeria apontam na dialética do desejo e à vista do jogo fálico, que se pode considerar como pontos de ancoramento das organizações histéricas. Segundo DOR (1991) convém apontar os pontos de cristalização em que esta lógica fálica corresponde um modo específico e preponderante que se fixa em torno da problemática do ter e do seu correlato não ter. A passagem do ser ao ter é determinada principalmente pela intrusão paterna. O pai (imaginário e simbólico) aí se manifesta intervindo especificamente como pai privador e frustrador do desejo da criança. É efetivamente porque o pai é reconhecido pela mãe como aquele que lhe faz a lei que o desejo da mãe se revela à criança como um desejo inscrito na dimensão do ter.
O jogo histérico é por excelência a questão desse passo a dar na assunção da conquista do falo. DOR (1991) observa que em Lacan é preciso que o pai a um dado momento dê a prova dessa atribuição. Ora, precisamente, toda a economia desejante do histérico se esgota sintomaticamente na colocação à prova desse dar a prova.
Aceitar que o pai seja o único depositário legal do falo é engajar seu desejo para com ele à maneira de não tê-lo. Por outro lado, contestar esse falo enquanto pertencente ao pai senão por ter dele desapropriado a mãe é abrir a possibilidade de uma reivindicação permanente concernente o fato de a mãe poder também tê-lo, ou mesmo ter ela o direito a ele. Nessa reivindicação do ter identifica-se alguns dos traços mais notáveis da histeria e igualmente o que a aproxima do sintoma anoréxico. Na anorexia o corpo toma dimensões fálicas onde o controle do mesmo subverteria a ordem do ser e do ter numa eterna militância do ter. O corpo serve então de instrumento de expressão de controle (ou ilusão deste) do seu desejo até mesmo nos limites da morte. Não tendo medo da morte a anoréxica se faz criadora do seu fim, mas também da sua origem. A dialética da finitude e do ser infinito é um dos ecos d atualidade. O corpo como um campo de batalha é um dos mandamentos de nosso tempo. Sob esse aspecto poderíamos pensar no que o discurso contemporâneo oferece para esse corpo e nas fraturas subjetivantes e que ele vê sendo lançado. A característica do desejo histérico é a insatisfação, sendo esta a única estrutura que corresponde a um discurso. É o sujeito dividido, o próprio inconsciente em marcha. O histérico é o escravo, sempre à procura de um Senhor. Precisa de um mestre. Excita o desejo do outro, mas não se aceita como objeto desse desejo.
Segundo NASIO (1991) a histeria não é uma doença que afeta um indivíduo, mas o estado doentio de uma relação humana que assujeita uma pessoa a outra. Seria antes de tudo, o nome que damos ao laço e aos nós que o neurótico ata nas suas relações com o outro a partir de suas fantasias. O histérico então é aquele que, sem ter conhecimento, impõe na relação afetiva com o outro a lógica doentia de sua fantasia inconsciente. Fantasia em que ele desempenha o papel de uma vítima infeliz e constantemente insatisfeita, estado este que domina toda sua vida. Mas qual é a razão disto?
“A razão é clara: o histérico é fundamentalmente um ser de medo que, para atenuar sua angústia, não encontrou outro recurso senão manter incessantemente, em suas fantasias e em sua vida, o doloroso estado de insatisfação. Enquanto eu estiver insatisfeito, diria ele, ficarei protegido do perigo que me espreita.(...), o perigo de viver a satisfação de um gozo máximo. Um gozo tal, que, se o vivesse, ele o faria enlouquecer, dissolver-se ou desaparecer.” (Nasio, 1991, p. 15)
A insatisfação tem que prevalecer e assim a anoréxica se resguarda também do genital afirmando a sua batalha cotidiana com o alimento numa luta de amor e ódio onde o corpo magro é o símbolo central de seus desejos e conquistas.
Segundo SCHEVACH (1999), a anorexia é definida como uma patologia dos laços amorosos com o outro e consigo mesma; seria, fazendo um jogo de palavras, uma amorexia. É importante assinalar que, quando a anoréxica se entrega à restrição alimentar, por mais séria que seja, isso não a incomoda. Ela se posiciona em sintonia com esse jejum alimentar, tornando-o problema para o outro. Seu sintoma é a gordura (ou as curvas) que elas vêem em uma determinada área. É um excesso irredutível localizado no seu corpo. É um transtorno insuportável causado pela distorção de sua imagem corporal. Observamos, em seguida, na anorexia, o borramento, o apagamento das formas do corpo feminino, a amenorréia, e certo desligamento do laço social.
A psicanálise verifica que esses transtornos alimentares não ocorrem apenas na aparência e em relação ao corpo. No fundo, são sintomas tributários das vicissitudes do amor, do desejo e do gozo. O desejo é, por excelência, da ordem da insatisfação. Só se deseja aquilo que está em falta. A anoréxica leva ao extremo a preservação do desejo pela sua insatisfação
A anorexia é uma das traduções da impossibilidade, ou da tentativa fracassada, do sujeito atual se inserir virtualmente na cena do espetáculo. ASSOUN (1993), em Freud e a Mulher, vê a anorexia como uma síndrome histérica que expressa enfaticamente algo de característico da feminilidade. O emagrecimento do corpo se origina no curto circuito da sexualidade com a função nutricional do alimento, daí a ética da ascética do corpo.
A anoréxica apresenta um espetáculo que responde à perplexidade de Freud, já que, em sua pretensão fantasística, ela é aquela que, por excelência, sabe o que quer. Porém, o que ela ignora é que esse querer determinado sustenta uma negação do desejo. Deste modo essa estrutura neurótica traz um traço de perversão na marca mesma de uma Verleugnung (renegação). "O querer garante a presunção do saber absoluto, mas esse corpo subjugado constitui uma barreira para algo que não quer se expressar, que é o desejo pelo outro" (ASSOUN, 1993, p. 118). Renegação da sedução: desencanto e ausência de sexualidade.
Na adolescência, momento em que a jovem se volta para o pai com a intenção de alcançar sua feminilidade, complementando o corte com o vínculo materno, é especialmente um certo olhar que ela requer da instância paterna. É o momento em que este olhar não pode faltar. Trata-se de uma demanda muda, aquela que envolve uma certa discrição, num ponto de hesitação simbólica, entre a pulsão oral (voz) e a pulsão escópica (olhar). Na dimensão da anorexia este pai é faltoso e o que ela busca, este olhar não o encontra, sendo assim ela parte sem alcançar sua feminilidade. Assim, dois objetos pulsionais têm seus destinos relacionados entre si, nesta metamorfose que vai elaborar a abertura para a feminilidade: momento de obter o reconhecimento, de consolidar a identificação, momento de ser vista.
A adolescente é demandante de olhar. A ausência de olhar do pai, o olhar vazio abre a dialética: comer/ser comido, olhar/ser olhado. O ódio pela mãe fornece a energia a esta demanda totalitária. Medo de ser comida (devorada) pelo olhar da mãe e "vontade" de ser comida (com os olhos) pelo pai. Com relação à figura materna, podemos dizer que diante do temor de ser devorada pelo olhar desse outro claramente determinado, sua mãe, a saída que a anoréxica encontra é tentar, ela própria, devorar o olhar de sua mãe, colocando-se a serviço de uma "fantasmática de devoração". Porém, apesar de sua tenacidade, de seu superinvestimento, sustentando uma fantasia de onipotência, que até pode vir a se expressar narcísicamente através de ideais éticos e estéticos, de perfeição física e moral, o resultado dessa estratégia será sempre o fracasso.
Para romper o laço com a mãe, aparece a demanda frente à relação com a figura paterna - é preciso eleger um pai ou fazer-se eleger por ele. E o que ela espera do pai? Muito: que ele lhe prometa que a amará, que lhe "fará" um filho e que ela será uma mulher (e que sua mãe não será obstáculo a nenhum dos 3 desejos). Olhar, uma estranha e complexa condição de existência.
Mas como se reconhecer, se em sua tenacidade a anoréxica é tomada pela cegueira? Aos seus olhos, o sexo do Outro é apenas uma falha, revelada ou por uma potência excessiva ou por uma fraqueza demasiada. Freud afirmou que o olho cego da histérica não via na consciência, mas via no inconsciente o encanto erótico do outro amado. Trata-se de fazer-se ver pelo pai, de buscar um sinal do que significa para ele que ela esteja em vias de tornar-se uma mulher. A questão urgente passa a ser: com que olho ele me vê?.
Podemos afirmar que a anoréxica se vê colocada frente a frente sua cegueira ao desejo, por aquele que não é nem viril nem feminino, mas falho ou onipotente:. (Nasio, 1991, p 142).
Assim, o que comove o histérico não é o encanto do sexual mas o encanto que emana da força ou, ao contrário, na fragilidade do parceiro. A lógica da fantasia de castração determina que o eu-olho-erógeno nãp apenas percebe a falha do Outro, mas se identifica com o objeto falo de que o Outro foi privado, o eu-falo percebe visivelmente a falta de falo no Outro. “(...) concluiremos dizendo que o próprio eu é um sexo à procura da falha do Outro-seja essa falha uma impotência ou um excesso de potência.” (Nasiop. 142)
No Seminário 11 vamos encontrar a proposta de um laço entre o olhar, a fascinação e o sacrifício do desejo puro, quando LACAN enfatiza que o que se solicita é o próprio olhar, e não a visão. Há que se manter a distância entre esse ponto de onde o sujeito se vê passível de ser amado e um outro, aquele em que "se vê causado como falta pelo objeto a e onde o a vem arrolhar a hiância constituída pela divisão inaugural do sujeito". Essa hiância nunca é atravessada pelo objeto a, e é assim que lidamos com sua função com valor de olhar. Esse olhar é justamente o que procuram as anoréxicas que desfilam seu corpo magro e se entregam na procura do olhar desejoso de um pai. Temos aqui, mais uma vez, uma interessante articulação entre a pulsão escópica e a oral, até mesmo nas próprias palavras utilizadas por Lacan: "esse "a" se apresenta, justamente, no campo da mensagem da função narcísica do desejo, como objeto indeglutível, se assim podemos dizer, que resta atravessado na garganta do significante. É nesse ponto de falta que o sujeito tem de se reconhecer.
Essa questão se faz explícita, se concretiza no próprio corpo da anoréxica, uma vez que atingir ao corpo ideal corresponderia a um padrão que, ao mesmo tempo, a identifica e a faz perder sua identidade subjetiva. Um corpo uni-forme, que devora a diferença, que não sustenta a bissexualidade psíquica constitutiva do sujeito. A cega determinação em negar a questão da falta se articula com a construção da imagem de um corpo ideal que lhe é particularmente conveniente. Promove ainda a construção de uma nova identidade através de um "sou anoréxica", ou ainda, posiciona-se pela palavra dos familiares: "Tenho uma filha anoréxica". Solução de posicionamento subjetivo, de localização do gozo. Em outras palavras, nomeia-se através do padecimento.
Igualmente no Seminário 11, Lacan refere-se à anorexia mental ao descrever a operação de separação, a operação constitutiva do sujeito do inconsciente, em que o sujeito diante do Outro responde à falta com a falta. É o momento de fazer-se desaparecer frente ao enigma do desejo do Outro:
“A fantasia de sua própria morte, de seu desaparecimento, é o primeiro objeto que o sujeito tem a pôr e jogo nessa dialética, e com efeito o faz-sabemos disto por mil fatos, ainda que fosse pela anorexia mental.” (Lacan, 1979, p. 203).
O sujeito é ser em nada (ser na morte) sob a forma do acting out ou da passagem ao ato, e o que irrompe após o ato é um encontro falhado, que báscula essencialmente fora de cena. Responde tragicamente à ignorância do Outro acerca do seu ser. HEKIER (1996) citando Lacan em A Direção da Cura, ao relacionar a posição da anoréxica com o desejo nos leva a deduzir que, ao recusar o alimento, ela sustenta uma verdade. A anorexia seria assim a expressão de um sintoma do desejo, de um desejo particular, um desejo de nada.
Por não conseguir situar o outro na sua liberdade de sujeito desejante, a anoréxica tenta uma frágil sustentação ignorando o outro como tal. Ela se isola do desejo dos homens e inscreve em seu corpo a marca de sua estranheza. Apaga de seu corpo todo sinal exterior de feminilidade, disfarçando as saliências de seu sexo, ou então, oferecendo, através de sua aparência trágica, sua versão grotesca.
A anorexia nos coloca diante do ponto culminante atingido pelo olhar no cenário do mundo, até além desse cenário, no ponto em que o sujeito é reduzido a uma pura e simples castração, ou a mero valor de mercado, numa sociedade inteiramente voltada para o consumo. Segundo NASIO (1991), na análise, o sujeito deverá ganhar em desejo o que ele perde em gozo. Dominado pelo componente narcísico que, como indicou Freud, pode dispensar um objetivo sexual, a anoréxica não alcança um corpo de prazer. O prazer fracassa em cumprir sua função de limite ao gozo.
A clínica da contemporaneidade parece apontar para uma ausência de corpo, no sentido até de uma descarga maciça das forças pulsionais. A análise vai permitir o remanejamento através do Outro e o retorno da força pulsional sobre o próprio sujeito, isto é, sua libidinização, para que possa nomear seus objetos de desejo, em lugar de sofrer de tanto gozo. Dito de outro modo, a análise buscará a construção da referida corporalidade do eu através da transformação das forças pulsionais a partir da inserção do sujeito na cadeia significante.
Marcelo HEKIER (1996) lembra que etimologicamente, "adicto" significa escravo, mas também pode significar não-dito, e é a partir dessa leitura que a Psicanálise vai poder escutar o corpo da anoréxica. Falar do corporal significa, fundamentalmente, apontar, por um lado, para as descrições corporais próprias de alguns fenômenos pulsionais, e, por outro, para o caráter unitário do psíquico e do somático.
Finalizo com HEKIER (1996), enfatizando que, quanto às psicopatologias da contemporaneidade, o psicanalista, ao ser convocado, não deve fazer desses posicionamentos subjetivos, uma categoria clínica, mas sim, escutá-los como uma demanda de questionamento constante da teoria, a fim de podermos fazer de nossa prática um movimento sempre reflexivo e permanentemente aberto. Existe uma mensagem no adoecer da anoréxica. Sua inanição tem um significado, um conteúdo. Isto que não pode ser falado é o que a clínica psicanalítica vai investigar. O que leva uma mulher a arriscar sua vida na busca de um ideal de beleza é o que é questionado na tentativa de compreender o que está envolvido neste jogo que mistura a exigência da sociedade e desejos, aparecendo inscritos no corpo, como uma metáfora.