terça-feira, 6 de dezembro de 2011

PER + VERTERE - A ARTE DE GOZAR A QUALQUER PREÇO

PER + VERTERE – A ARTE DE GOZAR A QUALQUER PREÇO

Pensar a perversão causou-me embaraço, pois se trata de um estudo um tanto quanto polêmico. Por onde caminhar para além da escuta clínica, já que esta não a tenho? (ainda).
Iniciei meu estudo com Freud que dedicou sua vida a desbravar o universo psíquico humano, e para tanto pesquisou as perversões a partir do seu clássico trabalho de 1905 Três ensaios sobre uma teoria sexual, que ele inaugura um estudo mais sistemático e consistente sobre as perversões sexuais, assim definindo o que se conhece como a sua primeira teoria sobre o assunto. Neste artigo, ensaia um estudo das perversões para, por meio dessas, poder demonstrar a existência da normalidade e dos desvios da sexualidade infantil. Em 1910, publica Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância, no qual aborda aspectos referentes à psicossexualidade desse artista, bem como, sua primitiva relação com sua mãe, o que vem a determinar uma identificação do menino com a mãe, tudo marcando o início da sua segunda teoria sobre as perversões. No entanto, é em 1927, no trabalho O Fetichismo que Freud estabelece a sua terceira teoria sobre a gênese dos mecanismos psíquicos da perversão, com o aporte de novas concepções referidas, sobretudo às defesas de renegação da angústia de castração.
Em um trabalho recente Campos (2010) salienta o significado do fetiche: “o fetiche é um substituto do pênis da mulher (da mãe) em que outrora o menininho acreditou e a que não deseja renunciar”. Assim, o fetichismo é tido como a recusa da percepção da diferença anatômica entre os sexos, ou seja, recusa da percepção de que a mãe não tem pênis.
Ainda Campos (2010) cita Clavreul (1990) em relação ao reconhecimento da diferença entre os sexos: “se trata não apenas de ter de conhecer uma particularidade anatômica singular mais contingente, mas também de ter de integrar o fato de que apenas a ausência pode ser causa do desejo”. Assim, a descoberta da diferença entre os sexos deveria ser a ocasião de uma reinterpretação relativa à causa do desejo e definitivamente, esta reintegração faltou ao perverso. Para o perverso coloca-se sempre a necessidade de transgredir uma lei, ou para, além disso, ele “recusa” a lei da castração para tentar substituí-la pela lei do seu desejo.
Outro valor assinalável da “recusa” é considerado por Deschamps (2008), segundo a autora no desenvolvimento o sujeito perverso ficaria preso a interrogação de ser ou não ser o falo, e dessa forma construirá uma estratégia para evitar a castração, isso caracterizaria o manejo perverso. Para muitos sujeitos perversos isso incluirá uma impossibilidade de realização do ato genital da sexualidade, como foi colocado anteriormente, tanto em seu objetivo quanto em seu objeto. Verleugnung, recusa é o mecanismo que sustentará a estrutura perversa, não pode reconhecer a castração e, se não é capaz de reconhecer a diferença anatômica entre os sexos, não será possível essa inscrição.
Em se tratando da perversão como estrutura, e mais especificamente a recusa na aceitação da diferença sexual, Lacan (1999) mostrou ser possível entender o discurso freudiano, livrando-o das aderências biológicas, compreendendo as “fases” como “estruturas” mais complexas, atemporais, organizadas a partir da relação com o Outro na dialética da demanda de amor e da experiência do desejo.
Lacan apresentado por Olimpio (2002) fortalece que na fantasia da diferença dos sexos, a criança atribui o falo a todas as pessoas, a atribuição fálica é universal. A falta se insere como estruturante pela constatação da ausência ou por sua ameaça de perda. Por isso o sujeito é incompleto, ameaçado pela falta e tem na insatisfação existencial o desejo de completude.
Se a criança percebe a mãe como alguém que não possui o falo, como uma pessoa faltante, castrada, mas que ao mesmo tempo não é desejosa do falo do pai e o destitui, promoverá em sua estruturação psíquica um investimento móvel do desejo. A criança se inserirá como sujeito faltante, mas não atribuirá ao falo do pai a castração, mas algo além deste objeto.
A mãe do perverso sempre teve um discurso muito ruim do pai, dizendo da sua incompetência e fragilidade, de modo que o perverso não reconhece o pai, pois esse não tem “competência” para aprová-lo. Ele se sente poderoso, pois acredita que é o único objeto de amor que faz a mãe gozar e a completa. Para o perverso, não importa que a figura do pai seja investida simbolicamente do falo. Ele o marginaliza, não o reconhecendo como representante da lei e o contesta. Há admissão da castração no simbólico, mas concomitantemente uma recusa – o desmentido.
O perverso aceita a angústia de castração sob a condição de transgredi-la. Ele não renuncia o falo, mas conjura de modo eficaz a angústia de castração. Assim, ele se esgota em demonstrar, regularmente que a única lei que ele reconhece é a lei imperativa do seu próprio desejo e não a lei do desejo do outro. O perverso não tem outra saída senão subscrever ao desafio da lei e à sua transgressão, sendo esses os seus traços estruturais. Ele transgride a norma porque sabe que ela existe, mas não a aceita.
Partindo deste esclarecimento sobre a perversão, ponho-me a refletir sobre o perverso em nossa sociedade moderna, esta, cercada de consumismo, onde a imagem é o que importa, uma cultura “narcísica”, e ainda, sociedade do espetáculo. Essas são algumas denominações contemporâneas que visam caracterizar as formas emergentes de subjetividade da “nova ordem social” (eh Caetano!!).
Ainda segundo Zygmunt Bauman (2009) em “Vida para consumo”, ressalta que tudo é temporário, e sugere a metáfora “liquidez” para qualificar o estado da sociedade moderna, que, como líquidos se caracteriza para uma incapacidade de manter a forma, não se solidificando em costumes e hábitos. Aqui entra o perverso que sem limites consome tudo, de produtos a ideologias e de práticas religiosas a sexuais. Vale tudo para ser alguém, mesmo que por breves instantes. Troca-se tudo. Troca-se de sexo, de cabelo, de cor, de nacionalidade. Troca-se de tudo, menos de time de futebol (este é imutável, ainda mais se for corinthiano!!!)
Parece pertinente também o ponto de vista de Charles Melman (2008), assinalando o princípio da busca imediata de prazer máximo, sem freios nem restrições em relação ao mundo virtual na atualidade proporcionado pela internet. Ali qualquer um pode viver uma série de vidas sucessivas sem nenhum compromisso definitivo. As pessoas querem se distanciar da realidade não porque ela seja assustadora ou sem graça, mas porque ela implica sempre um limite. Além disso, a realidade requer uma identidade, um objetivo mais ou menos claro na vida, ao passo que esses exercícios virtuais não pressupõem nenhuma identidade, nenhuma perspectiva e ainda derrubam todos os limites, incluindo os do pudor e da polidez.
Assim, faz-se mister concluir que (como diz Anna Rogéria) “o pai Freudiano está morto!”, pois o pai atual (Pai Real) não sabe ser pai como outrora, instituindo a Lei e os limites, e neste caso o perverso como sujeito sem Lei, tem desejo de fazer e o faz. Ele não propõe nada, simplesmente goza ao burlar a lei. Ele não quer uma nova lei, mais ampla. Ele quer a mesma lei. Ele precisa dela para gozar, pois só tripudiando dela é que seu deboche encontra satisfação.


Autora: Rosely Vieira Cecílio (membro do NAEPP – Núcleo de Atendimento  Estudo e Pesquisa em Psicanálise)

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