sábado, 12 de novembro de 2011

Texto apresentado na Jornada da Delegação GOIAS/DF da Escola Brasileira de Psicanálise



Novembro 2011

Anna Rogéria N. de Oliveira

“Anorexia, feminino e contemporaneidade”



Etimologicamente, o termo anorexia deriva do grego "an-", deficiência ou ausência de, e "orexis", apetite. Também significando aversão à comida, enjôo do estômago ou inapetência, as primeiras referências a essa condição surgem com o termo fastidium em fontes latinas da época de Cícero (106-43 aC.) e vários textos do século XVI. Durante a Idade Média, as práticas de jejum foram compreendidas como estados de possessão demoníaca ou milagres divinos. Bell, em 1985, relata o comportamento anoréxico realizado por 260 santas italianas aparentemente em resposta à estrutura patriarcal a qual estavam submetidas, e conhecido como “anorexia sagrada”.



A psicanálise verifica que esses transtornos alimentares não ocorrem apenas na aparência e em relação ao corpo. No fundo, são sintomas tributários das vicissitudes do amor e do desejo e do gozo. Temas estes articulados com a cultura. Neste trabalho gostaria de propor a seguinte questão: Seria assim a anorexia uma das traduções da impossibilidade do feminino  na  contemporaneidade?



Freud sustenta desde o início de seus trabalhos que as modificações corporais presentes na histeria eram expressões de uma afecção psíquica. Freud utilizou a observação, a descrição e o detalhamento do sintoma como seu método de investigação, a fim de demonstrar a reciprocidade da relação entre corpo e alma.



Segundo BIDAUD (1998), a anorexia é definida como uma patologia dos laços amorosos com o outro e consigo mesma; seria, fazendo um jogo de palavras, uma amorexia. É importante assinalar que, quando a anoréxica se entrega à restrição alimentar, por mais séria que seja, isso não a incomoda. Ela se posiciona em sintonia com esse jejum alimentar, tornando-o problema para o outro. Seu sintoma é a gordura (ou as curvas) que elas vêem em uma determinada área. É um excesso irredutível localizado no seu corpo.





Na anorexia o corpo toma dimensões fálicas onde o controle do mesmo subverteria a ordem do ser e do ter numa eterna militância do ter a morte passa a ser um mito debatido no corpo no cotidiano. O corpo serve então de instrumento de expressão de controle (ou ilusão deste) do seu desejo até mesmo nos limites da morte. Não tendo medo da morte a anoréxica se faz criadora do seu fim, mas também da sua origem. A dialética da finitude e do ser infinito é um dos ecos da atualidade. Numa época onde o pai está morto..ou pelo menos decaído como inscrever a ordem e a imposição dos limites? O corpo como um campo de batalha é um dos mandamentos de nosso tempo. Sob esse aspecto poderíamos pensar no que o discurso contemporâneo oferece para esse corpo e nas fraturas subjetivantes em que ele se vê sendo lançado.



A anorexia é uma das traduções da impossibilidade do feminino na contemporaneidade, ou da tentativa fracassada, do sujeito atual em se inserir virtualmente na cena do espetáculo.  Apresenta um espetáculo que responde à perplexidade de Freud, já que, em sua pretensão fantasística, ela é aquela que, por excelência, sabe o que quer. Porém, o que ela ignora é que esse querer determinado sustenta uma negação do desejo.  "O querer garante a presunção do saber absoluto, mas esse corpo subjugado constitui uma barreira para algo que não quer se expressar, que é o desejo pelo outro" (ASSOUN, 1993, p. 118). Renegação da sedução: desencanto e ausência de sexualidade. Gozo.



Gozo em sua tenacidade, de superar o esperado, de seu superinvestimento no vazio, sustentando uma fantasia de onipotência, que até pode vir a se expressar narcísicamente através de ideais éticos e estéticos, de perfeição física e moral, o resultado dessa estratégia será sempre o fracasso.



Essa questão se faz explícita, se concretiza no próprio corpo da anoréxica, uma vez que atingir ao corpo ideal corresponderia a um padrão que, ao mesmo tempo, a identifica e a faz perder sua identidade subjetiva. Um corpo uni-forme, que devora a diferença, que não sustenta a bissexualidade psíquica constitutiva do sujeito. A cega determinação em negar a questão da falta se articula com a construção da imagem de um corpo ideal que lhe é particularmente conveniente. Promove ainda a construção de uma nova identidade através de um "sou anoréxica", ou ainda, posiciona-se pela palavra dos familiares: "Tenho uma filha anoréxica". Solução de posicionamento subjetivo, de localização do gozo. Em outras palavras, nomear-se no feminino através do padecimento...o ser e nada símbolo ou melhor nova ordem simbólica para se inscrever no gozo do feminino.



Por não conseguir situar o outro na sua liberdade de sujeito desejante, a anoréxica tenta uma frágil sustentação ignorando o outro como tal. Ela se isola do desejo dos homens e inscreve em seu corpo a marca de sua estranheza. Apaga de seu corpo todo sinal exterior de feminilidade, disfarçando as saliências de seu sexo, ou então, oferecendo, através de sua aparência trágica, sua versão grotesca. O corpo é também aquele que condensa o valor erótico. É por ser libidinal que o corpo mortificado se opõe ao que lhe resta de vivo. O gozo se impõe como periférico, localizado nas bordas corporais, em objetos entendidos como que fora do corpo. Nesse sentido o corpo se opõe à carne – carne como corpo morto, esvaziado de gozo, deserotizado. O que ocorre é que, se por um lado a libido vivifica, por outro lado o significante mortifica, esvazia o gozo.



O próprio gozo porta em si um furo substancial, que nos mostra que o corpo encontra-se esvaziado de gozo, ou seja, não há gozo total, existe sempre um além, existe sempre um “mais de gozar”.



Segundo QUEIROZ (2004), em um levantamento da literatura sobre os "novos sintomas" e a contemporaneidade, podemos enxergar nossos tempos como o tempo da desrregulação. A regência da economia psíquica, que antes era exercida pelo recalque, agora é exercida pelo gozo. Nestes tempos em que a liberdade individual é colocada em primeiro plano, a rotina é banida, o tempo é vivido de modo retalhado com uma crescente desvalorização do passado, criando assim uma temporalidade operatória que substitui a histórica, desvalorizando o conceito de futuro enquanto produzido.



A clínica da contemporaneidade parece apontar para uma ausência de corpo, no sentido até de uma descarga maciça das forças pulsionais. A análise vai permitir o remanejamento através do Outro e o retorno da força pulsional sobre o próprio sujeito, isto é, sua libidinização, para que possa nomear seus objetos de desejo, em lugar de sofrer de tanto gozo. Dito de outro modo, a análise buscará a construção da referida corporalidade do eu através da transformação das forças pulsionais a partir da inserção do sujeito na cadeia significante.



Marcelo BIDEAU (1998) lembra que etimologicamente, "adicto" significa escravo, mas também pode significar não-dito, e é a partir dessa leitura que a Psicanálise vai poder escutar o corpo da anoréxica. Falar do corporal significa, fundamentalmente, apontar, por um lado, para as descrições corporais próprias de alguns fenômenos pulsionais, e, por outro, para o caráter unitário do psíquico e do somático. Uma resposta que torna urgente em saber o que vem a ser o feminino na contemporaneidade. A anorexia seria então uma resposta a uma pergunta que instaura uma lógica de gozar no imperativo...Já que se tem que gozar até o infinito então não...o nada... Nesta configuração cultural em que a falta, a categoria do impossível, é cada vez mais expulsa do discurso. E através de seu corpo, limite fronteiriço de sua subjetividade, que mais uma vez o sujeito acha alguma forma de se colocar enquanto sujeito desejante, sujeito movido pela falta, sujeito que vive através da falta.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ASSOUN, P.L. Freud e a mulher. Rio de Janeiro. Zahar, 1993.

BIDAUD, É. Anorexia mental, ascese, mística: uma abordagem psicanalítica. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1998.

FREUD, S. Casos clínicos I: Anna O. e Emmy Von N. 1895. Rio de Janeiro: Imago, 1997.

______. História de uma neurose infantil. 1918. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. 17.

LACAN, J. O estádio do espelho como formador da função do eu tal como nos é revelada na experiência psicanalítica. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 96 – 103.

_______Seminário, livro 11 de Lacan: Os 4 conceitos fundamentais da psicanálise (1963-64). Rio de Janeiro. Jorge Zahar, 1998.

______. Os complexos familiares na formação do indivíduo: ensaio de análise de uma função em psicologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

MELMAN, C. O homem sem gravidade: gozar a qualquer preço. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2003.

NASIO, J.D. A histeria teoria e clínica psicanalítica. Rio de Janeiro. Zahar, 1991.

QUEIROZ, E. F. A clínica da perversão. São Paulo: Escuta, 2004.

RECALCATI, M. Clínica del vacío: anorexias, dependencias, psicosis. Madrid: Editorial Sintesis, 2003.

RIBEIRO, C. N. G. Ana (orexia): uma imagem obscena. Recife: UNICAP, 2008. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica), Centro de Teologia e Ciências Humanas, Universidade Católica de Pernambuco. Recife, 2008.

SOLER, Colette. 1989. O corpo no ensinamento de J. Lacan. Campo Freudiano. Belo Horizonte.


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