terça-feira, 12 de julho de 2011

Rio, Violência e Direito

Mineiros, 7/04/2011
“Veio fazer palestra para os alunos?”, perguntou a professora Dorotéia, referindo-se à programação de encontros com ex-alunos bem-sucedidos para comemorar os 40 anos da escola. Não era o caso de Wellington. Doroteia pediu que ele esperasse, pois estava ocupada. Minutos depois, começou a tragédia. Ele saiu da sala, largou a mochila, colocou o cinturão com carregadores, entrou em uma sala e anunciou: “Vim fazer a palestra”. Em seguida, mirou na cabeça das crianças da primeira fila e a disparou com um revólver 38. A outra arma, um revólver 32, não foi usada. Meninas eram maioria na sala e sentavam na frente, segundo a polícia. Gritos, dores, desespero. (O Estadão 7 de abril de 2011)
O que podemos entender do que é inexplicável? O que precisou para tamanha barbária?
Muitas perguntas sem respostas nos levam a indagar o tema da violência, da lei e do desejo.
Segundo Freud, inicialmente, numa pequena horda humana, era a força física que decidia a quem alguma coisa devia pertencer ou quem veria sua vontade executada. No início então, a lei se impõe pela força. Esta é movida por uma vontade que se aplica ao outro, um objeto. Posteriormente é que a paz social pôde se organizar "pela superação da violência por meio da transferência de poder para uma unidade maior", a comunidade comum instaurada num grupo humano e a partir deste momento o grupo dominante substitui o ato de matar pelo de escravizar. O corpo do outro pode servir ao desejo de quem impõe sua lei. Desta maneira, o vencedor "abre mão de uma parte de sua própria segurança" pois o vencido, vivo, constitui uma ameaça.
Neste episódio é o que se verificou:um jovem que se sentia completamente fora de tudo e de todos, que se constituía como existente na solidão de seu computador e no planejamento de um ato que o libertaria dos ímpios (segundo suas palavras em uma carta deixada). Sua violência é a marca da violência que desapossou o vencido e que assegura a base da tranqüilidade social obriga o vencedor, para sua própria segurança. Ação pela coação pela não-defesa do outro. De forma assustadora o agressor se sentiu o libertador numa mensagem em que ele libertaria os ímpios pela sua pureza de alma (o que ele deixou bem claro na sua carta com especificações do seu funeral). Ele se sentia obrigado a tal ato como uma resposta a algo que lhe havia sido retirado.
A violência é originária e a união triunfa assim a violência é dobrada, quebrada pela união. (Vanier 2004). Mas é essa violência que funda o poder de possuir o que é do outro, ou até mesmo o próprio outro; a violência dá origem ao direito. A união não faz a violência desaparecer, o que faz é deslocá-la. De fato, nesse momento, não é mais a violência de um indivíduo que se impõe mas sim a da comunidade; neste caso a comunidade dos excluídos;a violência garante o direito. O direito de tirar a vida de outros porque não se obteve o necessário ou o suposto do que lhe era devido. A violência assim existe em detrimento da civilização ou da tecnologia ou mesmo do sagrado.
Em efeito a calmaria social não deixa de ser uma guerra que repete incansavelmente a pilhagem original do passado, por meio da violência que se abate do vencedor sobre o vencido. Com efeito, este último não cessa de ser despojado daquilo que lhe cabe e do que produz. Lembrar que este massacre não foi em qualquer local, na escola local de construção e nem as vítimas foram ao acaso, crianças que são o simbólico do futuro. Pode-se ler assim destruição do futuro e do desejo pela alienação do terror.
Alienação do trabalho e mais-valia, segundo Marx, que Lacan propõe ler como mais-de-gozar (VANIER, 2001). Este gozo original, esta violência, circula de forma canalizada e regrada nos vínculos sociais, e torna-se a função do direito. Cada um pode, então, ter esperança de recuperar um dia um pouco daquilo de que foi espoliado. No caso de Wellington ele esperou a redenção após sua morte.
Algumas pessoas comentaram o fato do atirador ter feito com sua própria escola, com sua comunidade. Qual era o direito dele de tirar a vida de inocentes crianças, comentavam outras... O direito é o poder de uma comunidade, o direito é, ainda e sempre, violência. No caso do agressor ele se considerava no direito de usar a tamanha violência. Freud conclui: "É um erro de cálculo não considerar que o direito em sua origem foi violência bruta e que ainda hoje não pode prescindir do apoio da violência." Freud se recusa a identificar tanto a violência quanto o mal à pulsão de morte e o bem e a paz à pulsão de vida, a Eros. O entrelaçamento entre eles é fundamental. Inclusive o fato da origem tardia dessas duas pulsões na história da psicanálise provém da dificuldade que existe para isolá-las uma da outra... A grande fissura existe quando existe um domínio exclusivo de uma sobre a outra.
Este fato deixa a dúvida do agressor ter este direito de tirar a vida de crianças. O direito levanta a questão da legitimidade da violência, quer dizer, da relação não mais entre violência e direito, mas sim entre violência e justiça. A violência apontada por Freud, do submisso em relação ao dominador será, por exemplo, legítima em relação à violência que seria justificada pela vontade de conquista ou de subjugar um grupo vizinho? É possível vida sem violência?A violência bruta original e a violência necessária de hoje serão da mesma natureza?

Anna Rogéria Nascimento de Oliveira
Psicanalista
Nova Escola Lacaniana de Psicanálise
Psicóloga docente da Universidade Paulista (UNIP)

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